Como uma planta piloto no Paraná pode escalar o SAF a partir do biogás

Desenvolvida pelo CIBiogás com recursos do governo alemão, unidade entrará em operação em breve para se tornar uma rota para os combustíveis sustentáveis de aviação no Brasil

Uma planta piloto localizada dentro da área da Usina Hidrelétrica de Itaipu, em Foz do Iguaçu, no Paraná, promete ser o começo da jornada que pode impulsionar o Brasil na produção de combustível sustentável de aviação (SAF, na sigla em inglês). Em fase de comissionamento, prestes a entrar em operação, a unidade usa o biogás como base para chegar ao produto capaz de movimentar os aviões e contribuir com a descarbonização do setor aéreo.

A missão está com a equipe do CIBiogás, uma Instituição de Ciência e Tecnologia com Inovação (ICTI+i) que há mais de uma década se dedica ao desenvolvimento do biogás como recurso energético, especialmente o biometano. Em 2020, uma nova janela de oportunidade se abriu a partir de uma parceria com a Fundação Araucária e a Agência Alemã de Cooperação Internacional (GIZ), na qual um curso sobre combustíveis avançados capacitou os profissionais do CIBiogás a produzir mais produtos derivados do biogás.

Dois anos depois, o CIBiogás foi incentivado pela GIZ a desenvolver uma proposta de projeto que desse um novo destino ao biogás. Em março de 2022, então, a GIZ aprovou o que foi apresentado e o governo alemão garantiu o investimento de R$ 9 milhões para a produção de combustível de aviação renovável a partir do biogás e do hidrogênio em escala piloto. E para fortalecer a empreitada, entraram outros parceiros, como Fundação Araucária, Universidade Federal do Paraná (UFPR) e Parque Tecnológico de Itaipu (PTI-BR).

Em um período curto, de menos de dois anos, o CIBiogás conseguiu transformar o projeto em realidade. Encomendada a um fornecedor da Índia, a planta piloto chegou por via aérea ao Brasil em dezembro de 2023 e menos de um mês depois já estava na Unidade de Demonstração (UD) de Itaipu para ser ajustada e posta à prova ainda no primeiro semestre deste ano.

“O desafio é fazer acontecer e com capacidade de observar tudo aquilo que precisa ser observado, porque nem sempre vai dar tudo certo. Há coisas no meio do caminho que vamos corrigindo, que é o que estamos fazendo agora”, pontua o diretor-presidente do CIBiogás, Rafael Hernando de Aguiar González.

Planta piloto: do biogás ao SAF

O biogás é o ponto de partida. Ele é um biocombustível produzido a partir da decomposição de materiais orgânicos, sejam eles de origem vegetal ou animal, que produzem uma mistura de gases, constituída principalmente de metano e dióxido de carbono (CO2) — dois gases do efeito estufa. Dessa maneira, o que seria um passivo ambiental acaba se tornando um ativo energético que contribui no enfrentamento à crise climática.

“Nós temos uma história de colocar a molécula do biogás à disposição de algum uso”, diz González. “Falamos de produtos que permitem, quimicamente, fazermos essa reforma e construir produtos mais nobres, com mais valor no mercado”, prossegue.

Para a planta piloto do CIBiogás, a matéria-prima do biogás vem de duas origens: resíduos dos restaurantes do complexo de Itaipu e materiais orgânicos apreendidos na região de fronteira do Brasil com Paraguai e Argentina pela Polícia Rodoviária Federal (PRF), Polícia Federal (PF), Receita Federal (RF) e Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA). Após a biodigestão dos resíduos, o biogás passa por remoção de impurezas e ajustes de composição, uma demanda do processo de reforma a seco.

Com a planta, poderemos mostrar ao mercado que esse processo funciona. É uma cultura brasileira de precisar ver para acreditar, ver a realidade do processo. A partir disso será possível transferir ao mercado, em escala.”

Rafael Hernando de Aguiar González, diretor-presidente do CIBiogás.

Após tratado e ajustado, o biogás entra no reator de reforma a seco para produzir o gás de síntese (syngas), uma mistura de hidrogênio (H2) e monóxido de carbono (CO), que é um insumo intermediário dentro da indústria química. Na sequência entra o reator de Fischer-Tropsch (FT), em um processo consolidado no mercado, que converte o gás de síntese no bio-syncrude, um óleo cru sintético com características semelhantes ao petróleo bruto.

É no processo de Fischer-Tropsch que entra outro elemento fundamental para a produção do combustível sustentável de aviação: o hidrogênio verde. Ele é o responsável pela hidrogenação do monóxido de carbono que vai formar os hidrocarbonetos, com foco especial nos parafínicos na faixa de cadeia carbônica de C8 a C16, intervalo no qual fica o querosene de aviação (QAV).

A planta do CIBiogás recebe o hidrogênio, proveniente de eletrólise utilizando energia renovável, do Parque Tecnológico de Itaipu. Ele é armazenado em cestos de cilindro e transportado até a planta, que fica a 2 km de distância, e conectado ao reator de Fischer-Tropsch.

A entrada do hidrogênio verde, aliás, é um ponto primordial do apoio da GIZ, que vem financiando diversos projetos em todo o Brasil com o objetivo de expandir o mercado de hidrogênio verde e produtos derivados no país. “Pela GIZ é muito importante a pegada neutra de carbono. É um ciclo muito completo de uma visão descarbonizada. Isso foi um difícil e fez a gente olhar o local para implantar a planta, que é onde está a nossa unidade de biometano dentro da Usina de Itaipu, a maior geradora de energia renovável do planeta”, acrescenta González.

Quando operacional, a planta terá capacidade para processar 50 m3 de biogás e produzir 90 m3 de gás de síntese por dia. Com isso, no total, poderão ser produzidos entre 6 e 8 kg de bio-syncrude diariamente, que ainda precisarão passar por refino para que seja obtido o SAF para abastecer as aeronaves.

Usina Hidrelétrica de Itaipu
Planta piloto do CIBiogás fica na Usina Hidrelétrica de Itaipu. Foto: Alexandre Marchetti/IB

O potencial de produção no Paraná

A planta do CIBiogás operará em escala piloto, mas poderá ser a confirmação de que é possível transferir a tecnologia para escala comercial. Esse, aliás, é o principal objetivo da instituição. Mais do que pesquisa, o CIBiogás pretende mostrar ao mercado que essa tecnologia é confiável e tem potencial financeiro.

“O CIBiogás não é universidade, nosso papel não é fazer pesquisa apenas. Nós queremos descobrir a visão do mercado. Nosso objetivo é dizer ao mercado quanto vai custar, onde compra, onde tem tecnologia. Nosso papel é ser um facilitador para a tecnologia estar disponível ao mercado”, esclarece o diretor-presidente do CIBiogás. “Temos essa clareza de visão de mercado. O objetivo agora é transferir o nosso conhecimento para uma planta de escala comercial. Esse é o desafio”, completa.

Há uma movimentação bastante interessante nesse âmbito no estado, então o Paraná tem tudo para ser um precursor de produtor de SAF a partir do biogás.”

Alessandra Freddo, engenheira e líder do projeto no CIBiogás.

O potencial já está mapeado, ao menos no Paraná. De acordo com estudos do próprio CIBiogás, a produção atual de biogás no estado é de 271 milhões Nm3/ano, mas com uma possibilidade de alcançar 1,7 bilhão Nm3/ano. Desse total, a indústria é o setor que apresenta maior potencial (994 milhões Nm3/ano), com fontes em unidades sucroenergéticas, abatedouros e frigoríficos, cervejarias e laticínios. Na sequência aparecem a pecuária (479 milhões Nm3/ano) e o saneamento (231 milhões Nm3/ano).

“O Paraná tem uma representatividade muito forte no cenário nacional na produção de biogás, tem o segundo maior número de plantas em operação de biogás e é o quarto maior produtor de biogás”, destaca a engenheira e líder desse projeto no CIBiogás, Alessandra Freddo. “Há ainda muita oportunidade para desenvolver o biogás no Paraná. Fizemos um trabalho com pesquisadores do projeto para estimar a produção de SAF a partir do biogás. Desse potencial total, poderemos produzir 104 mil m3 de SAF por ano”, complementa.

Esse volume de SAF é equivalente a 45% de todo o querosene de aviação (QAV), de origem fóssil, que saiu da Refinaria Presidente Getúlio Vargas (Repar), em Araucária, na Região Metropolitana de Curitiba — os dados são do Painel Dinâmico do Mercado Brasileiro de Combustíveis de Aviação da Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP). Quando somado com a Refinaria Alberto Pasqualini (Refap), em Canoas, na Grande Porto Alegre, os 104 mil m3 de SAF a partir do biogás representariam 26,3% de todas as entregas de QAV da região Sul.

“Há uma movimentação bastante interessante nesse âmbito no estado, então o Paraná tem tudo para ser um precursor de produtor de SAF a partir do biogás, pelo potencial e iniciativas que já estão sendo feitas aqui no estado”, aponta Alessandra.

Operação e próximos passos

Na fase de comissionamento, a equipe do CIBiogás está garantindo que todos os componentes da planta piloto estejam devidamente calibrados para que ela possa entrar em operação nos próximos meses. São pequenos, porém, importantes ajustes que definirão o sucesso do projeto.

Mesmo que ainda não esteja em operação, os próximos passos já são conhecidos. “Com a planta, poderemos mostrar ao mercado que esse processo funciona. É uma cultura brasileira de precisar ver para acreditar, ver a realidade do processo. A partir disso será possível transferir ao mercado, em escala”, comenta González, que antecipa que já há interessados em escalar o uso de biogás para produzir o SAF. Por questões de confidencialidade, não pode divulgar quais são as empresas.

Há ainda a questão da certificação do produto final. Essa rota tecnológica, chamada de SPK-FT (querosene parafínico hidroprocessado e sintetizado por Fischer-Tropsch) é uma das oito já aprovadas internacionalmente pela American Society for Testing and Materials (ASTM), organização que certifica os processos para a produção de combustíveis sustentáveis de aviação. Para essa rota, é autorizado o uso de até 50% de SAF na mistura com combustível de origem fóssil no tanque das aeronaves, usando o conceito de drop-in, ou seja, podendo ser usado e misturado ao QAV sem a necessidade de realizar alterações nos motores e nos sistemas dos aviões.

Segundo a engenheira Alessandra, o projeto do CIBiogás já engloba uma parceria com a ANP para o envio do bio-syncrude e do SAF para a agência analisar e verificar se está enquadrado dentro da resolução nº 856/2021, que estabelece as especificações dos combustíveis alternativos e analisa a qualidade do produto em vários aspectos, como composição, volatilidade, fluidez, estabilidade, contaminantes, aditivos, entre outros.

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