Pesquisadores brasileiros estão contribuindo para o desenvolvimento de tecnologias que podem tornar os aviões mais eficientes do ponto de vista energético, reduzindo o consumo de combustível e, consequentemente, colaborando para a descarbonização do setor aéreo. É o que vem acontecendo nos últimos anos nas bancadas da Boeing Research & Technology (BR&T) Brasil, em São José dos Campos, no interior de São Paulo.
No fim de 2023, duas soluções que nasceram na unidade brasileira da companhia dedicada ao desenvolvimento tecnológico tiveram suas patentes concedidas pelo Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI) e poderão ser absorvidas pelas equipes da fabricante nos Estados Unidos no desenvolvimento de novos produtos, incluindo uma nova geração de aeronaves.
A primeira aponta para a implementação de um algoritmo no Sistema de Gerenciamento de Voo (FMS, na sigla em inglês) para permitir uma subida contínua em mudanças de altitude durante voo de cruzeiro. A segunda leva em consideração a alteração do centro de gravidade da aeronave, em tempo real, para calcular de forma mais precisa a queima de combustível.
Ambas patentes têm o potencial de reduzir o consumo de combustível, uma demanda corrente das companhias aéreas, visto que o querosene de aviação (QAV) representa um dos principais gastos das operadoras. Além do aspecto financeiro, há, como consequência, uma redução na emissão dos gases do efeito estufa, notadamente o dióxido de carbono (CO2).
Essas soluções estão em linha com os caminhos indicados pelo Grupo de Ação do Transporte Aéreo (Atag, na sigla em inglês), uma coalizão que reúne os principais atores da aviação para buscar a meta de descarbonizar o setor aéreo até 2050. São quatro pontos principais na avaliação do grupo: combustível sustentável de aviação (SAF), medidas de compensação de carbono, tecnologia e operação.
A pesquisa brasileira da Boeing se encontra nesses últimos dois quesitos. Primeiramente por se tratar de uma tecnologia que interfere na construção, no design e nos sistemas das aeronaves. Além disso, as soluções propostas afetam diretamente na operação dos aviões, ou seja, no comportamento da máquina durante os voos.
“Hoje não se desenha avião sem olhar para sustentabilidade”, aponta o gerente técnico da BR&T Brasil e autor das patentes, José Fregnani. “Esse é um tema central aqui do nosso centro. Tudo o que fazemos é para melhorar a eficiência operacional. Não existe design eficiente de avião sem pensar nisso”, reforça.
Da observação às simulações de taxas de subida ideais
Qualquer ganho de eficiência para a redução no consumo de combustível é, segundo a própria indústria aeronáutica, muito importante. As pequenas somas das tecnologias e das formas de operar evitam a queima de milhões de litros de combustível fóssil — e futuramente de combustível sustentável. E foi pensando nesses pequenos detalhes que surgiu a ideia para a patente que dá ao avião a possibilidade de subir para a altitude ideal de forma mais suave, sem a necessidade de intervenção da tripulação.
Essa solução começou em 2009 quando Fregnani trabalhava em uma companhia aérea do Oriente Médio. Ao observar, junto com outro colega brasileiro, os dados de voos de longo alcance, especialmente sobre locais como o Atlântico Sul e o Norte do Canadá, ele notou que pilotos faziam ajustes de altitude de 100 em 100 pés, tornando as subidas mais suaves do que a forma com que o piloto automático do avião faria. Ele resolveu realizar alguns cálculos e verificar se essa maneira de pilotagem interferiria no consumo de combustível. A resposta foi que, em muitos casos, sim.
Hoje não se desenha avião sem olhar para sustentabilidade.”
José Fregnani, gerente técnico da BR&T Brasil.
Anos depois, quando começou a trabalhar na BR&T Brasil, decidiu sugerir uma solução aos colegas da Boeing nos Estados Unidos e logo estava trabalhando em conjunto com o engenheiro Geun Kim, então responsável pelo FMS do Boeing 777. “Rodei algumas simulações aqui no Brasil e desenvolvi um protótipo de simulação para verificar se haveria algum ganho no consumo de combustível. E pelas simulações, o resultado foi realmente de ganho de combustível para voos de longo alcance”, lembra Fregnani.
O método otimiza a subida de cruzeiro de uma aeronave e pelos estudos ficou confirmado que se o avião tivesse a capacidade de subir com taxas de subidas ideais, entre 10 e 50 pés por minutos, o custo total da subida seria minimizado. Entretanto, essa abordagem extrapola as capacidades técnicas atuais disponíveis no FMS. E é exatamente nesse ponto que entra a solução gestada na BR&T Brasil.
Pelas simulações, a possibilidade de realizar a subida com taxas mais suaves pode proporcionar uma economia de cerca de 50 kg até 150 kg de combustível em subidas de 2.000 pés. Sem contar o ganho em relação à carga de trabalho do piloto, que não precisará mais atuar diretamente nesse sentido, deixando ao FMS o cálculo e a atuação junto ao piloto automático nas trocas de altitude.
Com os cálculos e soluções, foi elaborado o conteúdo da patente e a companhia alocou os recursos para proteger a ideia. No escritório de patentes dos EUA, o United States Patent and Trademark Office (USPTO), essa patente foi rapidamente aceita. Mas no Brasil foram necessários alguns anos para que ela fosse concedida — o pedido foi protocolado em julho de 2017 e reconhecido como patente pelo INPI em 31 de outubro de 2023. Com isso, essa solução não pode ser utilizada por outra fabricante no país.
Patentes brasileiras na fila de desenvolvimento
Antes de qualquer voo, o piloto ou outro membro da companhia aérea calcula o centro de gravidade (CG) da aeronave de acordo com a quantidade de combustível, passageiros e carga. Durante o voo, esse CG se altera à medida que o combustível é consumido e precisa ser compensadas pelas superfícies de controle de voo, mas nos aviões atuais não são levados em conta quais tanques de combustível devem ser primeiramente usados para que seja reduzido o arrasto e, consequentemente, o consumo de combustível.
É nesse ponto que entra a outra solução desenvolvida no Brasil e agora assegurada como patente. O sistema proposto usa cálculo em tempo real do centro de gravidade da aeronave durante o voo para determinar a previsão de queima de combustível. Para isso é necessária a instalação de sensores nos tanques de combustível e a conexão com o sistema de gerenciamento de voo, que vai calcular o fator de resistência, ajustar a previsão de queima e notificar ao piloto o ajuste necessário ou mesmo fazer isso automaticamente.
É muito importante para o Brasil ter essa capacidade de contribuir de maneira global.”
José Fregnani, gerente técnico da BR&T Brasil.
Essa ideia também foi desenvolvida em conjunto com o engenheiro Geun Kim e aplicada inicialmente nos Estados Unidos. O USPTO, entretanto, não concedeu essa patente, ao contrário dos escritórios europeu e brasileiro. Por aqui, a ideia que foi protocolada em setembro de 2018 foi concedida como patente em 21 de novembro de 2023 pelo INPI.
“Foi sempre uma parceria do Brasil com o pessoal dos Estados Unidos. E isso continua diariamente”, conta Fregnani — a BR&T Brasil já conseguiu 17 patentes em todo o mundo, em diversos setores. “Nos orgulhamos aqui no Brasil de termos essa capacidade de trabalhar com o pessoal dos EUA de igual para igual”, reforça. A ideia da taxa de subida ideal, aliás, chegou a ser premiada internamente pela Boeing.
O mais importante para o escritório local é que tudo o que seja desenvolvido por aqui de fato seja usado pela fabricante em seus projetos. Essa é a expectativa. As mudanças, porém, podem levar tempo, pois geralmente são aplicadas em novos produtos. Isso porque se tratam de soluções que interferem em diversos sistemas e é preciso ter uma abordagem completa para a implementação. De qualquer forma, tecnologias desenvolvidas no Brasil já estão com a Boeing nos EUA, prontas para acompanharem os aviões que ainda estão por vir.
Muito do que já saiu dos computadores da BR&T Brasil está ligada à eficiência e redução das emissões de gases do efeito estufa. E a tendência é de que essa linha seja ainda mais forte nos próximos anos, alinhada aos planos de descarbonização da Boeing. Até 2030, por exemplo, a fabricante garante que todos os seus aviões serão capazes e certificados para voarem com 100% de combustível sustentável de aviação, inclusive realizando testes em parceria com a Nasa e a United Airlines para contabilizar os benefícios do SAF.
Para a próxima geração de aeronaves, a Boeing tem realizado testes com hidrogênio como combustível, bem como avançado na eletrificação. Neste caso, recentemente a fabricante adquiriu a Wisk Aero, uma startup que está desenvolvendo eVTOLs, os veículos elétricos de decolagem e pouso vertical, movidos à energia elétrica e que voam de forma autônoma. Tudo como um ensaio para o que está por vir especialmente na próxima década.
“Nosso papel é criar do zero, ter uma tecnologia que tenha sido testada de laboratório em ambiente representativo, e conseguimos maturar essa tecnologia. E é muito importante para o Brasil ter essa capacidade de contribuir de maneira global. No fim será usado de maneira global. É muito importante para o desenvolvimento do nosso centro, para a nossa capacidade”, finaliza Fregnani.